Dessa vez o barulho era problema. Dessa vez, qualquer música parecia percuciente demais. Mas algo precisava apagar a constante lembrança daquela voz que lhe proferira profissionalmente dissimulações ao ouvido (e se repetia doce sem parar...), por isso o aparelho de som continuou a tocar. Odiou Cazuza com argüição mordaz por um breve instante, mandou as mentiras sinceras, as raspas e todos os restos pra putaquepariu (porque “pra-muito-longe” parecia perto). Procurou outra cor que não fosse a do olhar, que não tivesse o que queria enxergar, procurou se perpetuar, procurou uma dor pra acordar... (procurou procurou procurou duas cores). Sentiu a iminência do espanto a verter. Sentiu o espanto destruir todo o sentido. Quis se jogar, quis se deixar derramar. Mas a limítrofe da sensatez estava próxima e nítida demais. Pra não ultrapassá-la, forçou-se a secar a gota que escorria agora pelo queixo porque nem isso mais fazia sentido, nem a dor, nem a saudade contumaz. Além de todos os sons, além de todo movimento indesejado pelas redondezas, além das vozes que não calam na memória, (além de tudo!) estava o mormaço. O mormaço, a rua, o semáforo, o engarrafamento. Minudenciar os detalhes era incontrolável. E por ser incontrolável se fez enfadonho. Mentira. Coisas enfadonhas desencadeiam uma sensação de torpor carregado de desdém. O que acontecia ali dentro do carro era mais que isso. Trouxe um sembalhante farto, era quase perturbador.
Conseguiu chegar à uma rua escura e tranquila depois de muito tempo. Era uma rua que nunca havia notado, embora passasse por ali todos os dias. O engarrafamento não parecia se diluir, não havia nem expectativa de quando isso aconteceria. Havia muito sobre o que pensar, ela estava sem dúvida pensando e muito. Ali, do assento ao lado, não ousei indagá-la quanto a isso, mas acredito que entrou na tal ruazinha sem muito calcular o que fazia. Parou o veículo, girou a chave, guardou-a e ficou absorta, dissuasiva, pensando distraída em qualquer coisa que certamente não tinha relação com aquele desvio de rota (talvez estivesse se desviando de alguma rota dentro de si, mas me refiro agora ao trajeto-de-todos-os-dias para a sua casa, para o seu mundo). Abriu a porta, pôs as mãos nos bolsos... foi caminhando fugindo da bagunça, buscando sossego no percurso alternativo até sua cama. O carro ficou ali, mas dessa vez nem eu me preocupei. Saí caminhando ao seu lado, olhando-a sem retribuição porque ela não sabia que eu estava ali, ela não sabia que eu sabia tanto, ela nunca me viu porque sou guarda, porque sou invisível, porque sou uma parte, porque estou nela. Surgiu a pergunta no meio de todo estardalhaço: “Traduzir uma parte na outra parte será arte?”
Supressão de ruídos.
Um comentário:
É, são tantas partes num corpo só...
vai ver é essa a beleza de se pensar que se está mudando, quando é só outra parte a se levantar...
Peeerfeito carol :)
E o livro que um dia você começou?
Postar um comentário